segunda-feira, 22 de novembro de 2010

É possível a arte escapar ao brilho narcísico? Ou, sobre livros e Jabutis...


É possível a arte escapar ao brilho narcísico? Ou, sobre livros e Jabutis...

Há muito sabemos sobre o mito de Narciso. Uma das melhores versões pode ser encontrada no poeta Ovídio (43 a.C. 18 d.C.), em seu livro Metamorfoses. Narciso é a história do belo rapaz, com o destino de ser feliz “se não se conhecer”. Sempre acompanhado de Eco, a mulher por detrás das pedras que só repete suas últimas palavras. Narciso não a escuta porque está apaixonado por sua imagem. A mesma imagem que o petrifica é causa de seu esplendor: horror (pela perda de sua consistência) e amor cego pela aparência. Narciso é símbolo inequívoco da fogueira das vaidades humanas. Freud já apontava para as rivalidades entre os seres humanos, as lutas de puro prestígio e relações hegelianas entre o senhor e o escravo, como um narcisismo das pequenas diferenças.

No narcisismo, o outro é sempre um intruso. No mundo moderno, acelerado pela veloz difusão da internet, há um rol crescente de intolerâncias, xenofobias, racismos, invejas, fundamentalismos, cobiças, ganâncias e todo o tipo promoção pessoal para se conquistar a fama a qualquer preço. Todos querem lucrar rápido. Todos parecem não ter tempo a perder, pois parecem precisar enlouquecidamente deixar alguma marca neste mundo. Se crenças seculares não mais respondem às mesmas perguntas sobre nosso passado e futuro, a vida parece se projetar num único e vazio hic et nunc. Com certeza que há um empobrecimento por este aqui e agora. A vida fast food, digere mal o que se consome nas prateleiras da vida.

Obviamente que não sou contra o marketing, como, a princípio, se poderia pensar. Aliás, gosto dele e aprecio fórmulas criativas na propaganda. Quando comecei a lecionar há quase trinta anos, dava aula de Psicologia da Propaganda e Marketing. O problema não é a criação, mas a eterna busca pelo brilho narcísico que se deteriora com uma velocidade espantosa. Querem a fama pela fama. O pedestal no qual está amparado o sujeito narcísico é frágil e se quebra com facilidade.

Pois bem. A arte não escapa, nunca escapou ao fantasma das rivalidades narcísicas. Aliás, ela, ao longo da história, muitas vezes se alimentou disso. Novas e brilhantes teorias foram escritas em todos os campos do saber para tentar derrubar outras igualmente importantes. Novas obras de arte foram esculpidas e pintadas para quebrar movimentos que excluíam o novo, o outro, o intruso. Músicas foram compostas para superar rivais e poderem tocar com exclusividade para os reis.

Portanto, a luta por uma fatia do mercado não é nova. Mudaram-se as formas, mas o conteúdo de acirramento das vaidades permanecerá o mesmo. Isto é do humano-ser.

Nos últimos dias, tenho acompanhado com atenção as reviravoltas do mercado editorial em torno dos prêmios literários no Brasil. O jornal Folha de São Paulo, em seu caderno Ilustríssima, publicou no dia 14 de novembro a matéria: “O dia do juízo: a política dos prêmios literários”. Ainda no mesmo caderno uma entrevista com Sérgio Machado (presidente do Grupo Record): “Edney Silvestre foi garfado”. É claro que sobre uma polêmica destas ele não poderia ficar sem resposta e, neste domingo, dia 21/11, Luis Schwarcz retruca: “Quem garfou Edney Silvestre? Ou como se discute um prêmio literário no Brasil”. (Para ler sobre estes textos: folha.com/ilustrissima).

Não vou entrar na celeuma sobre Chico Buarque (de quem li O leite derramado), Edney Silvestre (de quem ainda não li Se eu fechar os olhos agora), Sérgio Machado, Luiz Schwarcz, etc. Na verdade, se o momento é de crise, é preciso poder aprender alguma coisa com ele. Desta luta de puro prestígio não há vencedores. Já se disse que de uma guerra ninguém sai vitorioso. Então, o que podemos aprender com isto? Lembro que quando atacaram as Torres Gêmeas, Busch disse que ou o mundo estava a favor do terrorismo ou estava a favor dos americanos. Uma posição sem saída? Aparentemente sim, se desta luta maniqueísta entre bem e mal não se produzisse uma terceira opção. E houve. O filósofo esloveno Savoj Zizek, escreveu um belo artigo em que dizia não querer nem um nem outro. E propunha uma terceira via que era uma lógica da função paterna que produzisse a castração e, assim, o corte no embate furioso entre as rivalidades narcísicas. O artigo era denso, extenso e me valeu muito para entender na época a crise que abalaria o mundo.

Então há que se pensar numa terceira via, pois o momento é extremamente fecundo para não “fecharmos os olhos agora”. Acompanho um crescente número de Festas Literárias (Flip, Fliporto, Fórum das Letras de Outro Preto, Conversas Literárias em SP), iniciativas como Prosa nas livrarias, Eu, o leitor, casas de produção de cultura ligadas aos livros, escritores e leitores, uma multiplicidade de obras de autores já consagrados de ensino técnico e/ou incentivo aos novos escritores, (No dia 07 de novembro a mesma Ilustríssima publicou “Carta a um jovem escritor” um excelente texto de Leyla Perrone-Moisés), os livros de Harry Potter, O Senhor dos Anéis, a Saga Crepúsculo, Fala sério, professor (e mais nove livros desta mesma série) de Thalita Rebouças, entre muitos outros de uma nova geração que ajudam a formar novos leitores. É difícil, muito difícil e muitas vezes desestimulante fazer com que o jovem desenvolva o gosto pela leitura de “A moreninha” ou através do ciúme doentio de Bentinho pela sua adorável Capitu. É claro que gostaríamos que todos lessem Machado, Drummond, Shakespeare, pois é preciso não só começar, mas fundamentalmente, gostar de ler. O mercado infantil e infanto-juvenil estão aí dando provas do vigor e da avidez com que o público comparece e prestigia Bienais como se fossem a um show de rock. Com espanto e brilho de orgulho nos olhos, presenciei uma multidão na última Bienal em São Paulo.

Além do que, novas editoras surgem da noite para o dia. O que isto tudo representa? Por um lado, um mercado livreiro em franca expansão e, por outro, interesses econômicos em jogo que terminam em disputas narcísicas. Sempre que está em jogo Um Pai, a luta entre os filhos para saber quem será o preferido produz mortes e rivalidades eternas. Desde Caim e Abel. E acabam por esquecer o que se plantou (Abel) ou o que se fez do leite (Caim).

Assim, nesta eterna disputa narcísica, será que não acabam por esquecer aquele que eles mais deveriam se preocupar: o leitor?

Carlos Eduardo Leal

Psicanalista e escritor